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4º Encontro REDE Terreiro Contemporâneo de Dança - Ana Alvarenga

Foto Victoria Arenque
"Ora desce às profundezas do navio onde nunca se soube o que é a esperança do mar."
Se a arte, de modo
geral, deve ser levada a todos de forma indistinta, a arte negra ou a arte
produzida por negros ou ainda a arte produzida em torno do patrimônio cultural afro
brasileiro tem o direito e o dever de ser levada à sociedade. Que me permitam
esquecer um pouco os heróis do pensamento ocidental; esquecer Ulisses com mãos
e pés atados ao mastro de um navio para não ouvir o canto das Sereias e Orfeu
que, com seu dispositivo instrumental, recolocou de volta aos remos,
marinheiros atraídos por esse canto. Ambos simbolizam o heroísmo metafísico
ocidental, ensurdecido, incapaz de ouvir o chamado
originário emitido pelo canto das Sereias. Se lançar ao mar, atraído por esse
canto, equivale a se entregar a uma busca periférica e solitária, capaz de
conduzir à escuta da potência da voz primordial. Assim como as vozes das Sereias chegam inaudíveis
ao pensamento ocidental para o qual elas prosseguem como seres incapazes de
enunciações racionais, válidas, os Negros foram igualmente desconsiderados da cartografia
oficial. O desvio da nau de Ulisses retrata o desvio do pensamento
ocidental que desqualifica a voz, o trabalho acústico e corporal, e conduz os
homens ao heroísmo da negação do conhecimento sensível. Assim também os negros,
seres cantores e dançarinos, foram desprovidos daquilo que contam e transportam.
Foram destinados a apenas emanar suas vozes e mover seus belos corpos,
insignificantes para o homem moderno, herdeiro desse desvio. Quanto mais cantaram
e dançaram, mais inaudíveis e invisíveis se tornaram. Tomado pela racionalidade
moderna, o pensamento ocidental perdeu a capacidade de lidar com a escuta desta
voz-corpo que proporciona um tipo de conhecimento, abre frestas do tempo
cotidiano, remete a outros tempos, mítico e arcaico, a um outrora.
Parto desta metáfora em torno
do Mito das Sereias para dizer que a Rede Terreiro Contemporânea de Dança teve
a nobreza de se interessar por "personagens"
que a história oficial deixou de incluir em suas páginas (Incluir, incluiu.
Entretanto, não levou ao conhecimento do público a real dimensão e exuberância
da população negra, menos ainda da arte que ela tinha a transmitir e
retransmitir).
A Rede Terreiro faz um trabalho notável para trazer à
contemporaneidade o conhecimento sensível que foi tão
covarde e duramente abandonado, negligenciado e substituído pelo conhecimento
racional. Há, com o advento da supremacia da racionalidade, um verdadeiro
abafamento das múltiplas inteligências que compõem o mundo, um silenciar
compulsório de vozes tão cheias de importância para a humanidade. A arte negra é,
livre das significações ditadas pela doxa,
um potente meio de transporte de inteligências milenares; ela é capaz de
proporcionar um intenso trânsito de saberes, pois ela carrega sensações e não
apenas significações, afetos e não conceitos, história oral e não apenas relatos
escritos "oficiais".
A voz da arte negra perpassa a divisão racional do tempo,
conduz ao anacronismo dos saberes. O que os negros contam com sua voz-corpo não
é um repertório para divertir e fazer passar o tempo, mas sim intensidades que
se deslocam na atemporalidade, saberes que se transmitem ao longo de gerações e
gerações. Essa voz-corpo transporta um conhecimento não integralmente
relatável, não literalmente descritível, mas sim um modo de existir outro,
outra forma de estar no mundo, alheia às exigências de precisão típicas da
racionalidade ocidental. O que essa voz-corpo negra faz é aumentar a amplitude
da exploração do mundo, como escreve Blanchot depois da passagem da nau de
Ulisses pela ilha encantada: "quando a narrativa (...) torna-se a riqueza e a
amplitude de uma exploração, que ora abarca a imensidão navegante, ora se
limita a um quadradinho de espaço no tombadilho, ora desce às profundezas do
navio onde nunca se soube o que é a esperança do mar".
Durante os dias 13 e
18 de outubro, a cidade de Uberlândia foi, portanto, palco de um evento de suma
importância para a sociedade como um todo, pois acolheu a Rede Terreiro
Contemporâneo de Dança. Além de proporcional uma programação de espetáculos que
dão visibilidade às mais diversas linguagens em torno das expressões culturais
afro brasileiras, esta edição do evento foi eminentemente voltada para a
discussão política em torno da questão da arte negra. Um dos maiores aportes
deste ano foi exatamente a qualidade da contribuição crítica
artístico-acadêmica. Assim, além de proporcionar ao público espetáculos de
inquestionável qualidade, a Rede Terreiro fez uma aposta ousada ao trazer à
cena a voz dos corpos, as discussões que brotam do fazer artístico e mostrou a
importância e a carência de eventos que convidam o público a pensar e discutir.
Ressalto, abaixo,
três pontos fortes da programação desta 4ª Edição do Rede Terreiro
Contemporâneo de Dança.
1)
Prêmio
Nacional de Expressões Culturais Afro Brasileiras
Logo na abertura, tivemos
a apresentação do Prêmio Nacional de Expressões Culturais Afro Brasileiras por
sua idealizadora, Ruth Pinheiro. Esse prêmio contempla propostas em todo o
território nacional, abrindo uma importante janela para dar visibilidade a
manifestações culturais tão historicamente invisíveis e inauditas no cenário
cultural brasileiro. A existência desse prêmio já é uma conquista e a
necessidade de sua manutenção deve ser alvo de luta e de vigilância. Trata-se
de uma questão política.
Destaco a feliz ideia
de convidar Ruth Pinheiro, idealizadora do prêmio. Nascida na Zona Norte do Rio
de Janeiro, Ruth é um dos grandes nomes nacionais da militância na luta pela reparação
aos povos africanos. Além de sua atuação na formação movimentos negros, na
década de 1980, foi convidada a participar do grupo Kizomba, que promovia o
intercâmbio cultural do Brasil com África, Estados Unidos e Caribe. Assim,
trabalhou com exilados da África do Sul e de Angola acompanhando artistas. Em
seguida, teve forte atuação na criação do Instituto Palmares de Direitos
Humanos. E, finalmente, na criação do Cadon - Centro de Apoio do
Desenvolvimento Osvaldo dos Santos Neves, que tem a missão de apoiar a cultura
e promover a reparação, que inclui políticas públicas para atender os povos que
foram dominados.
O que Ruth Pinheiro levou foi a consciência de que existe um movimento cultural imenso no Brasil - o
afro-brasileiro - que precisa de recursos. Assim, Ruth luta para mudar uma
triste realidade, a saber que, lamentavelmente, apenas uma pequena parcela do
orçamento do Ministério da Cultura é destinada à difusão da produção desse
segmento. Há falta de acesso aos agentes culturais, e também não há interesse
das empresas patrocinadoras. Em sua apresentação na Rede Terreiro, fica muito
claro que sua militância ainda é ativa para dar visibilidade à arte negra.
2) Rodada de Negócios
Uma
iniciativa absolutamente conectada com as necessidades das relações de trabalho
no mundo contemporâneo, a realização de uma Rodada de Negócios inaugura um novo
modo de estabelecer relações profissionais no mercado. De forma muito simples,
objetiva e prática, programadores e artistas se colocam frente a frente, numa
apresentação horizontal para tratar de suas respectivas ofertas e demandas. Ao
apostar nesta forma de "negociação", a Rede Terreiro se mostra naturalmente
conectado ao tempo que vivemos. Sem qualquer preconceito diante da palavra
"Negócio", o que se propõe é um encontro prático: por um lado, artistas têm a
oportunidade de se colocar pessoalmente, falar de seu próprio trabalho,
apresentar de forma mais viva e calorosa o que pretende levar a público; por
outro, programadores ávidos por conhecer bons trabalhos têm a chance de tocar
de forma um pouco mais palpável no que o artista produz. A Rodada de Negócios
se apresenta, portanto, como um meio caloroso e objetivo de agilizar processos.
3)
Oficina "Inovações em Projetos Culturais", com André Martinez
Martinez nos leva a refletir sobre que
capacidades o empreendedor tem que são validadas para aproveitar nas políticas
públicas, o que nos leva a perceber a importância de ser proceder a uma abordagem
sócio criativa: que potenciais temos para enfrentar esse mercado árduo.
Martinez aponta a necessidade de entendermos que temos que ser fazedores e
pesquisadores do nosso fazer e, principalmente, chegar à constatação de que o
nosso fazer também é produção de conhecimento. Martinez também levou à oficina
o conceito de Arquitetura Cultural: aprender sobre o território. Outro
importante aporte foi ideias do biólogo chileno Humberto Maturana, visando se
pensar na noção de biologia cultural - trazer os princípios biológicos para
entender a construção de conhecimento cultural. Finalmente, Martinez chama
nossa atenção para a questão da disponibilidade de ouvir, disposição para
conhecer o outro, e resgatar o afeto pelo outro, porque o outro sou eu. A
existência do outro me faz. Assim, dialogar é operar uma percepção do onde
existe o nós, o eu como produção de interferência do outro.
Para terminar, Matinez trouxe à cena o
que ele chama de "Pensamento Complexo", noção que concilia termos
tradicionalmente opostos, propondo uma convivência que flexibiliza toda ideia
maniqueísta, fazendo dialogar os seguintes elementos:
Pensamento
individual ======= Pensamento coletivo
Pensamento
cartesiano ====== Pensamento Sistêmico
Razão
=================== razão, emoção, intuição
Separação
entre disciplinas === Articulação entre disciplinas
Ou/ou
==================== e / e
Causa
e efeito ============= Acaso
Solucionar
================ compreender
(re)
produzir =============== criar, amar
Ciência
=================== ciência, filosofia, arte, mitos
Desenvolvimento ========= Aprendizagem, inovação
Pensamento
de alienação ===== fenomenologia
mais expansiva
Economia
viabilidade ========= Ecologia
sustentabilidade
O objetivo da dinâmica é ver que há
sempre dois lados a serem ponderados. Há meios de conciliar algumas questões
fundamentais quando se trata de Projetos Culturais.
Ana Alvarenga
Autor / Fonte:Ana Alvarenga