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Fernando Ferraz - Artigo
Fernando M. C. Ferraz - Universidade Estadual Paulista/Unesp.
Doutorando em Artes pelo Instituto de Artes da Unesp; Mestre em Artes (IA/Unesp);
Bacharel em História (FFLCH/USP); artista da dança, pesquisador e educador das
danças de matrizes negras. Publicou: As
tramas da Dança Afro Contemporânea na cidade de São Paulo In: CAPEL; REINATO;
CAMARGO (Orgs). Performances Culturais. 1ª ed. SP: Hucitec, 2011.
Rede Terreiro:
pluralidades na dança negra contemporânea.
Rede Terreiro: pluralities in contemporary
black dance.
Resumo:
O seguinte ensaio traz uma reflexão sobre as atuações dos artistas
participantes da Rede Terreiro de Dança Contemporânea. A partir de
considerações gerais que recuperam os debates teóricos sobre cultura da
diáspora africana, apresenta reflexões sobre a constituição da dança negra no
Brasil. Propõe, também, apreciações sobre a formação desses artistas, suas
poéticas de criação e comprometimentos políticos singulares como nuanças constituidoras
deste estilo de dança.
Palavras
chave: Dança negra, dança afro, Rede Terreiro
Abstract: This essay brings
a reflection about the actions of the artists participating in the Rede
Terreiro de Dança Contemporânea. Starting from general considerations
recovering theoretical debates about the culture of the African Diaspora,
presents reflections concerning the constitution of black dance in Brazil. It
also proposes comments about the formation of these artists, their creative
poetic and political commitments as particular levels of this dance.
Keywords: Black dance,
Afro-Brazilian dance, Rede Terreiro
O seguinte ensaio é uma reflexão elaborada
a partir de minha vivência como participante no encontro Rede Terreiro de Dança
Contemporânea[1].
Com o propósito de integrar artistas dedicados à produção das danças de
matrizes negras o evento orientou-se pela troca de
vivências artísticas e reflexão crítica sobre a dança afro-diaspórica no
Brasil, sua história, diversidade e contemporaneidade.
Conforme os próprios organizadores seu
objetivo era "promover a difusão de pensamentos, registros e obras produzidas com
base no universo cultural negro da diáspora africana e reflexões sobre os caminhos
de fruição desta expressão[2]".
Em seus cinco dias de
programação proponentes, artistas e público trocaram experiências em diversas oficinas
teórico-práticas. Cambiaram-se conhecimentos oriundos de singulares tradições
de dança, onde participantes de formações diversas tomavam a palavra para
compartilhar impressões, formulando questionamentos e provocações sobre os
fazeres artísticos vivenciados.
Constituidoras de uma linguagem
artística e campo de conhecimento essas danças engendram-se como fazer estético
diaspórico, capaz de articular formas híbridas entre corporalidades associadas
aos repertórios tradicionais da cultura afrodescendente, a reinvenção constante
dessas matrizes na contemporaneidade e as dimensões e engajamentos da
movimentação política negra.
Desde os anos setenta, teóricos como
Sidney Mintz e Richard Price tem difundido a noção de que a cultura
afro-americana pôde ser compartilhada na medida e na velocidade que a própria
experiência da diáspora africana possibilitou sua criação. Nos anos noventa, Stuart
Hall propõe conceber a cultura negra como experiência criativa diversa,
distanciada da ideia de legados expressivos perdidos, mas fruto de adaptações
inseridas nos espaços mistos e contraditórios da estética diaspórica, onde suas
narrativas, corporalidades, simbologias, musicalidades, oralidades e
representações produzem inovações constantes.
[1] O evento, cuja segunda edição realizada entre 29 de agosto e 2 de setembro de 2012, foi produzido pela SeráQuê? Cultural, através de projeto contemplado com o II Prêmio Nacional de Expressões Culturais Afro-Brasileiras, iniciativa realizada pelo Centro de Apoio ao Desenvolvimento Osvaldo dos Santos Neves (CADON) em parceria com a Fundação Palmares e patrocinada pela PETROBRÁS, através da Lei Federal de Incentivo à Cultura.
[2]http://centroculturalvirtual.com.br/conteudo/terreiro-contemporaneo-de-danca-2012-ii-edicao, consultado em novembro de 2012.
Para o autor o contexto histórico afro-diaspórico de rearticulações e reconfigurações impossibilita a existência de uma herança africana no singular. Assim como, defende a ideia de que essas manifestações não formam ou derivam de modelos de pureza, pois dependem de um conhecimento da tradição enquanto mutação.
Na cultura popular negra, estritamente falando, em termos etnográficos, não existem formas puras. Todas essas formas são sempre produto de sincronizações parciais, de engajamentos que atravessam fronteiras culturais, de confluências de mais de uma tradição cultural, de negociações entre posições dominantes e subalternas, de estratégias subterrâneas de recodificação e transcodificação, de significação crítica e do ato de significar a partir de materiais pré-existentes. Essas formas são sempre impuras, até certo ponto hibridizadas a partir de uma base vernácula. (Hall, 2009, p. 325)
No Brasil, a história da produção
teatral das danças afro diaspóricas tem sido determinada pela atuação singular
de cada intérprete, seus desejos e comprometimentos. Este fazer artístico
permeia espaços distintos como os grupos folclóricos, os
projetos educacionais existentes nas periferias dos centros urbanos, as ações
culturais de entidades vinculadas à militância negra, as comunidades de culto
das religiões afro brasileiras, as agremiações e escola de samba, mas também,
ocupa espaço nos estúdios de dança, se subjetiva em processos de criação
de intérprete-criadores independentes, questiona
seus próprios clichês, reclama pelo reconhecimento da crítica especializada,
reivindica espaço nos departamentos das Universidades
e nas pautas dos grandes teatros.
Apesar
das trajetórias especificas o que liga o fazer destes artistas é a forma
particular com que acionam dimensões de negritude em seus trabalhos. Esses processos
encobrem tensões entre as diferentes formações artísticas, as estratégias de
atuação profissional, os engajamentos políticos variados, os discursos e
práticas sobre a tradição e a contemporaneidade.
Implicações
políticas da dança negra.
Culturas historicamente marginalizadas
em relação ao mainstream tem se
organizado e constituído políticas culturais de diferença, de lutas em torno da
diferença, essas práticas não garantem espaços de vitória ou cooptação total
nos contextos contemporâneos, mas asseguram agenciamentos que as inserem na
disputa por posições de poder no âmbito da produção cultural. Essas ações
frequentemente reivindicam ao elemento negro um lugar político de resistência
frente aos cânones ocidentais dominantes. Sua ação garante a sobrevivência das
tradições e a persistência da experiência de suas estéticas e contranarrativas.
Stuart Hall ao analisar a cultura negra,
no entanto, critica ações políticas que às essencializam ao criar oposições
binárias entre papeis de subalternidade e dominação. Para o autor essa postura
vicia um lugar de contestação constante, de vitimização e negação, não
contribuindo para assumir a complexidade das identidades em jogo. Esses
discursos de diferenciação tendem a elaborar representações sobre a
autenticidade da cultura negra que se tornam facilmente produtos de
mercantilização e homogeneização, retificando estereótipos que a própria
militância negra contesta. Para o autor as ações de diferenciação do negro fora
dos contextos de intervenção política não são capazes de constituir uma
categoria suficiente para representação, visto as diversas subjetividades
existentes. O negro não é uma categoria de essência!
O momento essencializante é fraco porque naturaliza e des-historiciza a diferença, confunde o que é histórico e cultural com o que é natural biológico e genético. No momento em que o significante negro é arrancado de seu encaixe histórico, cultural e político, e é alojado em uma categoria racial biologicamente constituída, valorizamos, pela inversão, a própria base do racismo que estamos tentando desconstruir (HALL, 2009, p.326-327).
Stuart Hall (2009) e Paul Gilroy (2012)
afirmam que a diáspora frisa uma reconceitualização da cultura a partir do
sentimento de sua desterritorialização, desta forma, transforma o conceito de
espaço e o transfigura num circuito comunicativo que capacita as populações
dispersas a interagir e mais recentemente até a sincronizar significativos
elementos de suas vidas culturais, sociais e políticas.
Os desdobramentos da discussão
contemporânea sobre o conceito da diáspora refletem resultados da movimentação
política negra, ganhos históricos dados pelo somatório de experiências radicais
em espaços transcontinentais. Neles se refletem imagens do movimento Black
Power e das independências africanas, negociando influências locais e globais
capazes de reconfigurar memórias ancestrais e históricas com as contingências,
indeterminações e conflitos dados pelo presente.
O pesquisador de dança afro americano
Thomas DeFrantz ao analisar os processos históricos da formação do termo dança
negra (black dance) indaga sobre suas
conexões com a dança afro-americana. Explica que ironicamente o termo "dança
negra", nos Estados Unidos, foi inventado por críticos brancos como abreviação
para definir aquilo que eles sentiam-se sem preparo ou desconfortáveis para nomear.
O autor narra como, durante as metamorfoses políticas dos anos 60, a dança
negra (black dance) tornou-se uma
categoria da performance gerada pelas conexões entre fazer artístico e
político, numa tentativa coletiva de definir uma estética negra. Mesmos que
muitos artistas não estivessem alinhados ao movimento negro organizado, suas
produções coreográficas foram associadas ao rótulo dança negra.
Esta
expressão inicialmente pretendeu diferenciar-se dos concertos performados pelo mainstream e foi empregada por
diferentes conotações, de um modo geral ela apareceu quando,
Nos anos 60, alguns espetáculos feitos por artistas afro-americanos para audiências também afro-americanas, intencionalmente dramatizaram e compartilharam memórias, experiências e valores estéticos da comunidade negra. Estas danças e seus estilos de atuação característicos tornaram-se conhecidas como "dança negra" (DEFRANTZ, 2002, p.6, tradução nossa).
Esse contexto de busca
político-identitária e sua reorientação afirmativa enfatizou conexões entre
experiências histórico-sociais e o fazer da arte, suportando idiomas de
movimentos múltiplos e uma variedade de abordagens expressivas na representação
da negritude. A dança negra norte americana transformou-se em ferramenta de mobilização
consonante com as novas demandas políticas do movimento negro. Engajando
produtores e audiência a conectar arte e política. Muitos artistas e
pesquisadores entenderam este movimento como categoria inclusiva, hábil para
englobar diversos idiomas de dança[3], tão amplos quanto suas produções oferecessem uma capacidade de intervenção
política alinhada com a busca de uma negritude presente no movimento negro. DeFrantz
argumenta que a categoria dança negra ocupa, atualmente, diversos espaços
discursivos simultaneamente, definindo-se por quem esta falando e para quem.
[3] Neste contexto até a dança clássica europeia foi reavaliada, quando a montagem do Ballet do Harlem, transformou a camponesa germânica do clássico Gizelle numa donzela negra das plantations em Saint Louis.
A
diferenciação entre os termos dança negra e dança afro-americana sugerem
avaliações construídas entre os espaços da recepção e as estratégias da crítica.
Essas considerações gerais nos oferecem
a dimensão da diversidade e do problema em perfilar na nossa contemporaneidade
as expressões artísticas de dança que dialogam com as matrizes corporais
africanas ou afro-brasileiras. O que une estes produtores? Todos estão
envolvidos num mesmo estilo de dança? Quais são os pontos comuns neste fazer
tão múltiplo que autorize uma identificação comum? Se as danças de matrizes
afro percorrem diversos espaços, dos terreiros das comunidades negras aos
palcos italianos dos grandes teatros; das vivências de fiéis das religiões
afro-brasileiras aos procedimentos coreográficos dos intérpretes criadores
contemporâneos qual o interesse em criar redes que conectem expressões tão díspares?
De acordo com o tempo histórico e
contexto sociopolítico, esta dança já foi nomeada como étnica, folclórica,
primitiva, afro-primitiva, afro-brasileira, negra, afro-diaspórica, negra
contemporânea, entre outras classificações. A despeito da diversidade de nomes
todas essas categorizações conectam-se através de referências compartilhadas
que cruzam elementos da história de cada criador, sua formação artística, o reconhecimento de linhagens
coreográficas construídas pelas relações com mestres e bailarinos da
velha-guarda, sua inserção no campo de produção cultural e seus
comprometimentos políticos e sociais.
A bailarina
Mercedes Baptista[4] usou inúmeras nomenclaturas para referir-se aos seus cursos. Além de aulas de
dança clássica, dança moderna e técnica Dunham, Mercedes também foi professora
de dança folclórica, dança étnica, dança afro-primitiva e, por último, dança
afro-brasileira. Essa variedade não somente demonstra a versatilidade técnica
da artista, mas também fornece indícios de como as últimas denominações apontam
para a construção, transformação e afirmação política de um estilo próprio.
Ao longo dos
anos sua atuação ajudou a construir uma rede de filiações, na qual os mestres
não moldaram totalmente seus discípulos, mas criaram conexões e alimentam
processos múltiplos. Embora a influência mais visualmente reconhecível na
produção desses grupos tenham sido as danças dos orixás em suas mais distintas
tradições, mesclam-se a elas as inúmeras variações do samba, os passos das
danças populares brasileiras e suas configurações regionais, os movimentos da
capoeira, as influências da dança moderna americana e até da técnica da dança
clássica, visto que grande parte de seus criadores também teve acesso a essa
formação.
Com o decorrer dos anos os produtores
desta dança afro assumiram a figura do coreógrafo criador afastando-se da mera
reprodução das danças rituais e populares. Suas criações resultam de mediações
entre experiências diversas, que integram saberes artísticos provenientes de
espaços múltiplos, como: terreiros, studios
de dança, bancos universitários, salas de ensaio e aula.
A análise da black dance americana
sugere abordagens possíveis para o estudo das danças de matrizes afro no
Brasil. Se a dança afro, enquanto linguagem constituída no imaginário de
centenas de dançarinos, incorpora abordagens coreográficas historicamente
determinadas no Brasil, reconfigurando fazeres de artistas como Mercedes
Baptista, Domingos Campos, Raimundo Bispo dos Santos e Marlene Silva (só para
citar alguns) o uso do termo dança negra, de uso mais recente entre seus
produtores, adiciona novas orientações políticas às práticas artísticas. Assim
como nos Estados Unidos, a dança negra no Brasil parece englobar dimensões
estéticas diversas, constituindo um conceito elástico e caleidoscópico que
testa sua coerência a cada nova abordagem agregada.
[4] Mercedes Baptista (1921) considerada a precursora da dança afro no Brasil (SILVA JR., 2007), foi a primeira bailarina negra do Balé do Theatro Municipal, em 1948. Participa do Teatro Experimental do Negro (T.E.N.) como bailarina e coreógrafa. Estuda com a bailarina e antropóloga norte-americana Katherine Dunham (1910-2006) nos EUA em 1951. No Brasil em 1953 cria o Ballet Folclórico Mercedes Baptista, onde desenvolve um estilo de dança com técnica e didática estruturadas, assimilando referências das danças rituais do candomblé, entre outras expressões das tradições afro brasileiras.
A Rede Terreiro e o cenário da
produção de dança negra no Brasil.
A
importância em tomar o evento como objeto dessa reflexão está em seu caráter privilegiado para visualizar a
multiplicidade de fazeres, identificados com a produção da dança negra no país,
agregando diferentes abordagens artísticas, educacionais e de pesquisa.
Nos últimos anos iniciativas reivindicam
o reconhecimento artístico das danças afro-diaspóricas em ações de legitimação
de sua memória, profissionalização e disputa por espaço no mainstream da dança profissional. Esses processos articulam debates
em inúmeros eventos e Festivais, tais como: o Eidan - Encontro Internacional de
Dança Negra (2008), o Fórum da Performance Negra (edições de 2005, 2006, 2009),
o 1º, 2º e 3º. Dançando Nossas Matrizes (DNM), organizado por um coletivo de
artistas produtores das danças afro-brasileiras (2011 e 2012) e o Festival a
Cena Tá Preta (2012), todos em Salvador; o Festival de Dança do Triângulo
Mineiro de 2010 (cuja 22ª edição teve como tema 'Matrizes e Reverberações: o
corpo negro e suas identidades na dança brasileira'), a Rede Terreiro
Contemporâneo de Dança (2009 e 2012) e o FAN - Festival de Arte Negra, que teve
em 2012 sua 6ª edição, os dois últimos em Belo Horizonte; o Festival
de Danças e Poéticas Negras [5] em Goiânia (2012); o Fórum Dança e Cultura Afro-brasileira
(2009) e a Semana Negra de Dança (novembro de 2010), realizada no Centro
Coreográfico do Rio de Janeiro, na época, sob a direção da coreógrafa Carmen
Luz, a Rede de Novos Coreógrafos Negros em Dança Contemporânea, formado
no Rio de Janeiro em 2011, com inquietações referentes aos lugares
pré-estabelecidos para corpos e artistas negros na dança contemporânea são
todos exemplos do desenvolvimento de redes de produção, divulgação e circulação
artística conectados com a dança negra.
Essa articulação também se dá na criação
de acervos documentais virtuais que facilitam a troca de informações e pesquisa, iniciativas cujo empenho visa construir registros da produção da dança negra na contemporaneidade.
Todos
esses esforços nos intimam a questionar o que se quer constituir como memória e
reflexão nestes fazeres. Quais as demandas e perspectivas artísticas desses
criadores? Quem seus envolvidos representam? Quais os projetos de poder são
compartilhados?
[5]O projeto também foi beneficiado pelo II Prêmio Nacional de Expressões Culturais Afro-brasileiras, financiador da Rede Terreiro de dança Contemporânea.
De um modo geral, essas iniciativas
privilegiam os discursos daqueles que estão conectados com uma dimensão do
fazer de dança. Estimulam a projeção de referências regionais, legitimando
práticas artísticas na história da dança negra brasileira, assim como,
esforçam-se por fomentar a produção de novos artistas locais. De um modo geral,
esses encontros resultam das articulações políticas de seus próprios produtores,
cada vez mais organizados na constituição de estratégias comuns de produção
cultural. Seus participantes circulam entre essas agendas, que se constituem
como espaço de reflexão e permitem o cotejamento entre os tensionamentos da
dança negra na contemporaneidade, pensada por e entre seus próprios produtores.
Além de capitalizar visibilidade aos seus integrantes, constituem espaços de
autorrepresentação, ao mesmo tempo, que questionam sobre os limites de sua
abrangência.
A segunda edição da Rede Terreiro, idealizada pelo bailarino, coreógrafo
e produtor cultural Rui Moreira[6], seu curador, organizador
e mestre de cerimônias, reuniu artistas residentes em Belo Horizonte, São
Paulo, Rio de Janeiro e Salvador.
[6] Rui Moreira (1963) paulistano radicado em Belo Horizonte desde 1984, inicia sua carreira como bailarino em 1979. Participa como intérprete no reconhecido Grupo Corpo, de Minas Gerais e nas companhias paulistanas Cisne Negro e Balé da Cidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à companhia SeráQuê? onde, desde 1993, desenvolve criações a partir de pesquisas de linguagens cênicas, tendo como mote as culturas afrodescendentes no Brasil. Foi curador em inúmeros eventos de dança, além de atuar como consultor em instâncias de representação setorial na implantação de um Plano Nacional de Cultura. Dirige a produtora SeráQuê? Promoções e Eventos Ltda. e é presidente da ONG SeráQuê?Cultural. Dentre suas inúmeras premiações destacam-se a APCA de SP em 1988 e 1991.
Em discurso oficial de abertura, seu idealizador
narrou uma série de acontecimentos prévios (Fórum de Performance Negra[7], Festival de Arte Negra[8]) como responsáveis pela
preparação do contexto propício para sua concretização:
Fez se um encontro com pessoas da arte, que pensam a partir da arte, com foco na arte para pensar a diversidade da produção de dança, cronologicamente falando, na contemporaneidade no Brasil e o que isso significava. Naquele momento essa conversa ressoou em várias cabeças e corpos. Essa ressonância criou em vários pontos do Brasil a necessidade de se levantar eventos e ações e conectar as iniciativas dessas pessoas no sentido de pensar essa diversidade. Levando em consideração o fato do Brasil ser o segundo país em densidade populacional negra, esse recorte da diversidade e da cultura foi valorizado. Já era um foco e estava sendo discutido no Fórum de Performance Negra e, especificamente, as ressonâncias se espalham pelo Brasil no fazer de cada um. Como essa diversidade pode vir a somar na cultura, no fazer e no ler desse tempo contemporâneo no Brasil? O Terreiro nasce neste contexto. Aqui em Belo Horizonte, a Seraquê? Cultural, através de um edital, propôs ao Ministério da Cultura fazer um encontro. Este primeiro encontro aconteceu no ano de 2009 no barracão do terreiro de candomblé Ilê Wopô Olojukan. Vieram a Belo Horizonte artistas, pensadores de São Paulo, Rio, Belo Horizonte e Espírito Santo. E num processo de roda, onde a circularidade e horizontalidade eram o mote, nós trocamos pensamentos, estéticas, reflexões ao ponto de alimentar aqueles multiplicadores daquela ideia; saindo Brasil a fora dando continuidade a esta história. Pontos luminosos de uma grande rede: aqui em Belo Horizonte, as ações do Festival de Arte Negra, do Coletivo Negraria, do Família de Rua. Em outros estados, no Rio de Janeiro, a Barbot Companhia de Dança, aliás, o espaço dela também se chama Terreiro Contemporâneo de Dança; a Carmen Luz, também no Rio de Janeiro, fizeram outros eventos, agrupando nomes e dando valor e visibilidade a este recorte da cultura nacional que é a cultura negra. (Depoimento de Rui Moreira em 30/08/2012 no Auditório do Memorial Vale, em Belo Horizonte).
A percepção das demandas apreendidas
anteriormente, somada ao intuito confesso em formar um espaço colaborativo motivado
pela troca de saberes sobre as danças negras na contemporaneidade orientou a
concepção do projeto. O encontro pretendeu suprir a carência de interpretações
e análises conceituais sobre as danças cênicas caracterizadas pela presença das
matrizes afrodiaspóricas, primando pela construção de conhecimentos entre os
próprios artistas e o público participante. Foi requerido
previamente que as oficinas ministradas pudessem suscitar reflexões e
questionamentos a partir, sobretudo, das práticas corporais propostas, embora variassem
os formatos das atividades e os espaços de sua execução.
[7] As edições do Fórum Nacional de Performance Negra organizado pela companhia baiana, Bando de Teatro Olodum, e pelo grupo do Rio de Janeiro, Cia dos Comuns representaram uma ação artística, coletiva e política com intuito de discutir e encaminhar questões como: políticas públicas, sustentabilidade, troca de experiências e arregimentação do discurso político-artístico negro.
[8] O Festival de Arte Negra (FAN) é um festival que ocorre bienalmente em Belo Horizonte com intuito de englobar diversas expressões artísticas da cultura afrodescendente e africana. Promovido pela Fundação Municipal de Cultura teve sua sexta edição em 2012, reuniu artistas, grupos e pesquisadores com intuito de discutir políticas públicas e produção artística em suas mais variadas linguagens.
Um dos pressupostos orientadores das
oficinas era a ênfase na conexão entre o fazer e o pensar sobre dança.
Concebendo a construção de saberes para além da contextualização histórica dos
agentes em processo, da apreciação estética dos fenômenos artísticos
apresentados, ou ainda, do conhecimento dos novos paradigmas e referenciais
teóricos do campo acadêmico, mas, especialmente, como ação que conecta
intimamente todas essas dimensões com o fazer prático, empírico e vivencial da dança.
Apostando na experiência do fazer deste corpo que dança como seu principal
condutor na geração de saberes.
A maior riqueza do encontro consistia
diretamente na diversidade dos enfoques propostos, na maneira como cada
participante recuperava e atualizava tradições particulares e expunha seu olhar
específico sobre a dança negra. Ao confrontar essas diferentes perspectivas, podemos
analisar, por exemplo, como artistas reinventam suas práticas, libertando-se
dos estereótipos que prendem sua arte a simplificações da tradição afro-brasileira,
que pouco contribuem para absorver os novos sentidos dessa linguagem de dança
na contemporaneidade.
Outro fator relevante foi a realização do evento nas dependências do
museu Memorial Minas Gerais Vale[9],
instalado nos antigos prédios administrativos do Governo, localizado na Praça
da Liberdade, coração da capital mineira. O Memorial Vale pertence atualmente
ao grande circuito cultural da cidade. A escolha do local para sediar a segunda
edição da Rede foi pensada pelos organizadores no sentido de garantir maior
visibilidade artística e credibilidade política ao evento.
Desde o início havia o desejo revelado
de construir uma arena reflexiva sobre a arte negra no país, avaliação
realizada, majoritariamente, por artistas negros cientes de sua importância e
da urgência na autoelaboração de uma crítica sobre o seu próprio fazer
artístico. Uma das unanimidades foi a consideração da urgência de eventos como
esse no sentido de não apenas referendar trajetórias artísticas, legitimando
suas metodologias de ensino, formas de transmissão e registro de sua história,
mas também, no sentido de criar meios de convívio e interações artísticas,
disseminando redes de diálogo capazes de integrar as diferentes perspectivas de
seus produtores.
[9] A construção deste Museu resultou de acordos políticos tributários entre a iniciativa privada, em especial a mineradora Vale (antiga Vale do Rio Doce) e o Governo estadual. Por um projeto de restauração arrojado e tecnológico o Memorial Vale, como é atualmente chamado, abriga um acervo sobre o patrimônio artístico e cultural mineiro, suas tradições e contemporaneidades. A reforma de suas instalações vinculou-se a recente política de revitalização urbana que pretende erguer grandes centros culturais no centro histórico da capital.
Neste sentido, uma das especificidades
do encontro foi o de não se orientar pela escolha de práticas cênicas que
dialogassem estritamente com as tradições afro descendentes, nem se restringir
apenas a presença de artistas negros.
Sua programação primou pelo caráter
múltiplo, englobando propositadamente fazeres heterogêneos capazes de compor
uma reflexão que inserissem seus produtores, simultaneamente, em políticas de
diferenciação e inclusão. Ao acionar fazeres identificados com a cultura
afrodiaspórica, em seu caráter mais ambivalente, pretendeu projetar a dança
negra dentro de um campo mais geral da dança. Fazendo as questões da dança
negra não pautas discutíveis entre seus próprios pares, mas assuntos adequados
em círculos maiores, principalmente quando se negociam estratégias de produção
cultural e fomento artístico na contemporaneidade.
Já de início havia uma expectativa que o
evento pudesse contribuir na produção de uma memória, como registro das
angústias e demandas artísticas atuais, tanto em nível de reconhecimento
artístico num cenário de produção cultural e cênica mais global, quanto nos
desafios criativos e questões poéticas em processo. Primando pela autonomia dos
envolvidos e a necessidade de ações colaborativas, o encontro visava expor e
compreender as tensões em jogo, estabelecendo um compromisso em pensar junto,
agregando particularidades, aceitando a diversidade e a abrangência das
linguagens. Sua programação desejava ampliar as referências sobre dança negra, apresentando
diversas experiências em interação para que pudessem ser ponderadas escolhas
poéticas, engajamentos sociais, modelos possíveis de produção e circulação,
métodos na transmissão de saberes e educação em dança, enfim, uma grande
diversidade de perspectivas socializadas pelos sujeitos de um fazer-saber de
dança.
Minha formação como historiador e
artista da dança[10],
cujo envolvimento como profissional neste estilo já dura 15 anos, contribuiu
para minha inserção nessa Rede como artista-pesquisador, interlocutor e
produtor do próprio campo. A análise aqui desenvolvida não comunga das posturas
teórico metodológicas distanciadas, ela se constrói pelo embaralhamento de
posicionamentos diferentes e, às vezes, conflitantes. Frequentemente borram-se
as fronteiras entre os papéis de dançarino, militante da dança afro, crítico da
própria militância, criador, pesquisador, historiador e educador.
[10] O termo foi elaborado em 2002, pela Classificação Brasileira de Ocupações, que redefine o profissional de dança, então "bailarino", por meio da ampliação de seu campo de atuação, incluindo uma variada gama de posições, como as de coreógrafo, intérprete e professor.
Por estes
atravessamentos pude traçar cumplicidades e compartilhar demandas, assim como,
identificar tensões e estranhamentos durante o encontro.
Para
um melhor entendimento dessa vivência relatarei determinados momentos do
evento, focando no trabalho proposto e desenvolvido por seus participantes, bem
como, na ponderação de informações sobre sua formação e atuação artística. Essas
impressões compartilhadas, elaboradas pelo olhar de um pesquisador participante
inserido no campo como artista capaz de mapear posicionamentos divergentes,
concebem os fazeres em jogo como formas de conhecimento produzidas dentro do
campo da dança.
Os
envolvidos na Rede
A primeira oficina proposta pela
programação foi de Capoeira e dança para crianças, ministrada por Mestre João Angoleiro[11]. Reconhecido pela forma
lúdica com que divide seus conhecimentos, Mestre João afasta-se da austeridade
disciplinar e marcial com que muitos mestres organizam suas práticas no ensino
da capoeira.
Mestre João é a incorporação da
malemolência calma do espírito rastafári, associadas com a concentração
ponderada de um iogue, prática, aliás, a qual também se dedica. João Bosco
rompe com as expectativas dos que reproduzem uma capoeira mais sensacionalista,
em seu jogo não se vê grandes saltos nem os virtuosismos acrobáticos, sedimentados
pela história dos espetáculos folclóricos. Privilegia uma tradição angoleira em
detrimento de uma performance mais à
regional, que critica por ter segmentos nos quais a excessiva competitividade e
comercialização são as principais finalidades. Seu ensino prioriza a mescla de treinamentos e
o respeito pelas capacidades corporais de cada um, preferindo o risco e o
despojamento da experimentação.
Seu trabalho confere suma importância ao
caráter da roda, como aspecto de fruição do compartilhamento das aprendizagens na
capoeira. Seu jogo é baixo, denso, cuidadoso, atento as descobertas corporais
individuais, aos caminhos e trajetórias dos olhares em jogo. Esse saber não
está inerte, sedimentado, ele está aberto à troca, à contaminação.
[11]João Bosco Alves da Silva (1961), conhecido como Mestre João Angoleiro é Mestre de Capoeira Angola, bailarino afro, mestre de dança africana. Fundador do Grupo de Capoeira "Eu sou Angoleiro" e da Companhia Primitiva de Arte Negra. Sua formação é de capoeira de rua desde 1975 a 1982 (Mestre Dunga, BH), Capoeira Angola (Mestre Rogério, RJ e Mestre Morais, BA), Dança Africana Moderna (Mamour-Bá, Senegal). Dirige a Associação Cultural "Eu sou Angoleiro", fundada em 1993, e atua como dançarino e coreógrafo da companhia Primitiva de Arte Negra desde 1989.
A capoeira
proposta aqui é cheia de teatralidade, observa princípios comuns entre o jogo
bélico dançado, os ensinamentos das religiosidades negras, mas também flui
entre as posições da yôga, ao estudo das articulações do corpo e aos trânsitos
com as artes cênicas. Os movimentos executados tornam-se partitura cênica a ser
estudada. Mestre João constrói uma metodologia de transmissão de conhecimento cujas
imbricações relativas à saúde, à ancestralidade, aos posicionamentos políticos
e ideológicos estão organizadas de forma holística e orgânica. Esforça-se em
integrar princípios das diferentes tradições de treinamento, assimilando
saberes da cultura popular, das práticas corporais orientais e das artes
cênicas contemporâneas deslizando entre territórios e construindo sua própria pedagogia.
Um contraponto interessante entre os trabalhos
mais "contemporâneos" foi a participação do grupo Aruanda[12].
O Diretor Artístico e Coreógrafo do Grupo Aruanda, Wagner
Cosse[13],
dirigiu uma apresentação didática cujo
intuito era conceitualizar as manifestações folclóricas de um modo
generalizante e distanciado. Realizada sob a forma de uma "palestra show", o
ministrante apresentava em Power point
quadros definidores dos fatores de identificação das manifestações folclóricas,
conforme a carta da Comissão Nacional do Folclore de 1995. Após sua longa
explanação no auditório do museu, alguns integrantes do grupo fizeram uma
demonstração de alguns toques, cantos e passos de Jongo[14].
Ao som de dois atabaques um dos percussionistas do grupo apresentava os tipos de toque, enquanto um dos bailarinos demonstrava alguns passos do Caxambu[15]: o "tabiado" (marcado pela pisada forte com o pé direito), o "mancador" (passo em que o dançarino parece mancar) e o "amassa café" (passo que faz referência ao trabalho dos negros escravos na cafeicultura).
[12] O grupo Aruanda, criado em 1960, se dedica a pesquisar, preservar e divulgar as principais manifestações folclóricas brasileiras, por meio da música e da dança. Seus dirigentes orgulham-se por possuir um acervo de mais de cem danças pesquisadas em todas as regiões do país. Atualmente organiza-se como Ponto de Cultura na cidade de Belo Horizonte.
[13] Wagner Cosse, nascido em Belo Horizonte, é cantor, dançarino, folclorista, produtor cultural e jornalista. Atua há mais de vinte anos como cantor e dançarino do Grupo Folclórico Aruanda, onde, desde março de 2009, exerce também a função de diretor artístico.[14] Jongo é uma dança de origem banto, desenvolvida pelas comunidades negras na região do Vale do Paraíba, sua origem remonta aos tempos escravistas do Brasil colonial. A dança é em roda e gira no sentido anti-horário, no interior da roda homens e mulheres formam pares, dançando uns em volta dos outros, podendo haver a umbigada entre os dançarinos. O canto é improvisado em versos, chamados de pontos e os participantes respondem o solista cantando e batendo palmas.[15] Nome dado a dança do jongo em algumas comunidades.
Após breve demonstração de alguns passos no palco do
auditório, fomos todos convidados a seguir para a sala de trabalho, onde se
desenvolveram a maior parte das atividades de dança do encontro. A sala, com o
chão coberto de linóleo preto, possuía um espaço de aproximadamente 10x5 metros
quadrados, nos quais dispusemo-nos em roda para a oficina de jongo, momento de
descontração entre todos os participantes.
Durante o evento, conversando com o diretor artístico do Grupo Aruanda,
ele me contou um caso que considero
bastante característico da forma de sua atuação. Ao pesquisar numa comunidade as
especificidades coreográficas da congada os bailarinos do grupo aprenderam um
passo que lhes chamava atenção pelo acento característico em uma das pisadas.
Anos mais tarde, numa de suas apresentações, ao serem confrontados por um
integrante da dita comunidade sobre a forma como o passo estava sendo executado,
descobriram que em sua ânsia em preservar as particularidades das expressões
apresentadas, não se atentaram ao fato de que um de seus principais informantes
na época era manco. A pisada acentuada recolhida e cuidadosamente codificada
tratava-se na realidade, para o espanto e decepção do pesquisador, de uma
deficiência física do congadeiro.
Este caso, para além de
uma anedota sobre as boas intenções daqueles que prezam pela fidelidade às
tradições, acaba por revelar também uma postura romantizada. Faz pensar sobre os
riscos deste olhar catalogador de alguns grupos folclóricos que, em seu anseio
patrimonialista de preservação, reproduz linguagens como um emaranhado de
expressões segmentadas a serem consumidas e cristalizadas. A aparente
diversidade a que presta seu trabalho de registro transforma facilmente um
conjunto de manifestações em demonstrações ensimesmadas. Divorciadas dos
movimentos de transformação e recriação, esses conjuntos de danças brasileiras
aparecem como entidades hermeticamente fechadas e protegidas, porém
folclorizadas. Ao defenderem seus traços diferenciais como exercício de
salvaguarda de seus registros e patrimonialização, acabam por produzir sua
eterna reprodução na qual a prática parece não conceber a sua própria
transformação.
Até que ponto o discurso sobre a originalidade
e espontaneidade das expressões afrodescendentes também não cria suas próprias
armadilhas, colaborando com a reprodução de olhares exotizantes?
A manhã do segundo dia do
encontro foi marcada pela presença de Edileusa
dos Santos, soteropolitana criada no
bairro da Liberdade teve seu primeiro contato com a dança durante o ensino formal
nos colégios públicos baianos. Há toda uma geração de artistas que nos anos 70 foi
beneficiada pela atuação de arte educadores. Nomes como Neide Aquino, Emilia
Biancardi e muitas outras promoveram a criação de inúmeros grupos folclóricos[16],
espaço de formação de muitos dançarinos. Nesses grupos a cultura negra
soteropolitana serviu de mote para uma educação artística plural e orgânica,
envolvendo dança, teatro, música, artes plásticas e outras linguagens
constituidoras do espetáculo. Este histórico pródigo, muito anterior aos precedentes
abertos pela Lei 10.639/2003, que obriga o ensino da cultura afro-brasileira no
ensino fundamental e médio, nos faz refletir sobre os proveitos de se
incentivar a arte e a cultura afro-brasileira no ensino formal.
Esta
experiência a leva cursar a Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia -
UFBA. Sua presença na Universidade foi marcada pela participação no grupo
Odundê, marco importante da dança contemporânea brasileira nos anos 80. Formado em 1981 no interior da Escola de Dança da
UFBA, sob a direção da professora Conceição Castro, constituiu um refúgio para as alunas cuja
experiência de dança construída nas comunidades, na
efervescência dos blocos afro e na formação artística dentro dos grupos
folclóricos[16], não era absorvida pelo currículo da Universidade, ainda restrito a
dança moderna e clássica. O grupo possibilitou que aquelas corporalidades
negligenciadas pudessem ser aceitas e exploradas, acolhendo a dança afro não
como estereótipo, mas como campo da dança a ser descoberto e recriado.
Edileusa integra também a companhia de dança afro Dance Brasil, sediado
em Nova York, como bailarina e coreógrafa, ministrando entre 1993 e 1997
workshops em escolas públicas, universidades, centro culturais e companhias de
dança em várias cidades dos Estados Unidos. Todos esses
envolvimentos fizeram com que Edileusa construísse uma postura crítica aos currículos da Universidade Federal da Bahia, que salvo
momentos específicos, muito pouco dialogou com a cultura negra local[17].
[16] Edileusa participou do Grupo Folclórico Exaltação a Bahia, grupo artístico criado na Escola Estadual Duque de Caxias cujo treinamento incluía bases de dança moderna, clássica e folclóricas (danças típicas do nordeste), responsável pela formação inicial de uma geração de artistas como: Tony Calado, Edson Bispo, Zebrinha (José Carlos Arandiba), António Cozido entre outros.
[17] Embora o currículo da graduação e da pós-graduação da Escola (em 2006 cria-se o primeiro Mestrado em Dança do país) não possua atualmente nenhuma disciplina focada na linguagem da dança negra, passaram pela instituição, desde sua fundação em 1956, um coletivo de profissionais e pesquisadores atentos ao estudo da cultura e da corporalidade afrodescendente. Nomes como Yanka Rudska, Hildegarges Vianna, Conceição Castro, Neusa Saad, Clyde Morgan, Laís Góis, Edva Barreto, Tânia Bispo, Edileuza Santos, Leda Ornelas, João Lima e muitos outros professores, com abordagens tão diversas quanto à própria multiplicidade das expressões da dança afro, trouxeram esta linguagem para os espaços da universidade, em produções teóricas ou práticas, gozando ou não de reconhecimento nos quadros hierárquicos docentes, seja em ações isoladas ou de extensão.
Em 1997, cria o Núcleo de Estudo da Dança Afro-Brasileira na Escola de
Dança, e destaca-se como pesquisadora e incentivadora da dança de expressão negra dentro da Universidade, nos espaços de
dança de Salvador e nas comunidades. Com uma postura atenta e reflexiva
constrói mediações entre sua prática artística e política, posicionando-se
enquanto mulher negra cidadã, atenta à revisão dos estereótipos, e à inclusão
da dança negra nos espaços de poder.
Em
sua proposta desenvolvida no encontro a artista surpreendeu ao propor um olhar
que redimensiona o papel do tambor, geralmente o primeiro a ser descartado e
proibido nas instituições resistentes ao ensino da dança afro diaspórica. Em
suas aulas os percussionistas não desenvolvem mero acompanhamento para a
execução de passos coreografados previamente, eles dialogam com o corpo do performer num jogo ininterrupto de perguntas
e respostas. Os participantes foram convidados a interagir com o instrumento em
seus cinco sentidos, a perceber, respirar junto com o tambor, que está vivo e
transforma a energia ali presente. Seus sons são como verbos que dão sentido à
ação, no qual o corpo reverbera os estímulos de forma conclusiva, alternativa
ou adversativa. Pelo ritmo do instrumento protagonista constroem-se ambientes.
Esse enfoque inclusivo abre espaço para o improviso e o lúdico, desenvolve
poéticas abertas aos sentidos, valorizando a experiência e a constituição do
saber pelo ato da dança.
Ao final da prática refletimos sobre a oficina e conversamos sobre o
trabalho pedagógico realizado por Edileusa. Muitos professores de dança afro
limitam a estruturação de suas aulas à mera aprendizagem e reprodução de
sequencias coreográficas prontas pelos alunos. Embora a improvisação faça parte
da tradição corporal afro diaspórica, muitos educadores identificados com a
linguagem das danças afro tem negligenciado dimensões da experimentação e da criação
sobre os padrões de movimento ensinados, prática cujo senso comum erroneamente
associa à produção da dança contemporânea, como se este campo tão igualmente
múltiplo estivesse isento de estruturações mais fechadas em seus processos de
transmissão.
Na tarde do segundo dia de evento, o bailarino
Carlos Laerte[18] coordenou uma oficina de dança contemporânea, focada na percepção de movimentos
cotidianos e sua fluidez, através do estudo de pequenas frases de dança e sua
relação com a respiração. Atento aos fazeres da dança contemporânea carioca, o
artista insere-se no panorama de dança da cidade e desenvolve seu repertório a
partir da mescla de diversas linguagens como balé clássico, dança
contemporânea, cinema e teatro.
[18] Também diretor e coreógrafo, desenvolve carreira profissional em dança há 20 anos. Com formação em jazz, balé moderno aperfeiçoa-se em escolas Harley Dance School e Steps (NY). Trabalha em diversas companhias brasileiras dançando com Deborah Colker, Carlota Portela e Renato Vieira. Realiza como coreógrafo diversos trabalhos reconhecidos pela crítica nos anos 2000, participando também de projetos na Europa e para Televisão. Atualmente dirige a Laso Cia de Dança, por ele criada em 2002.
Entre as conversas durante os dias do encontro, o coreógrafo contou ter
se sentido desconfortável, algumas vezes em sua carreira, com as expectativas
dos que assistiam seu trabalho. Reconhecendo-se como coreógrafo negro, cuja experiência
social da negritude é fator essencial de sua prática e criação artística, na
medida em que reverbera as dimensões desta vivência, condena aqueles que esperam
distinguir em seu trabalho uma estética e estilo de movimentação da dança
afro-brasileira. Seu comentário encaixa-se na questão
político-conceitual fundamental dentro da discussão sobre a diversidade de
expressões da dança negra.
Neste
sentido, o encontro ao incluí-lo na programação assume o recorte diverso da produção
artística afro-diaspórica, no qual a experiência de produtores negros ao
assumir um discurso político de negritude, independente da linguagem artística
por eles escolhida, já é suficiente para inseri-los como partícipes desta rede.
Sobre esta questão o coreógrafo afro
americano Rod Rogers[19] tece
um comentário oportuno num artigo antológico publicado em 1968
na revista The Negro Digest[20], intitulado "Don't Tell
Me Who I Am". O texto foi motivado pelo questionamento sobre como sua dança
era afetada pela experiência de ser afro-americano, apesar de seu trabalho não
manter, há tempos, relações com a dança afro-cubana e o jazz.
O coreógrafo americano questiona,
nos anos 60 e 70, a noção disseminada entre negros e brancos que a identidade
cultural negra somente pode ser estabelecida a partir de temas e materiais
afro-americanos tradicionais. Para ele
há um papel da arte negra em não simplificar identidades, limitando-se a lidar
exclusivamente com materiais tradicionais. Se as questões sobre identidade nos
trabalhos de arte são recorrentes, elas devem ser tratadas por sondagens que
agreguem diferentes aspectos de seu ambiente.
Rodgers chama atenção sobre seus
objetivos artísticos como coreógrafo, ao tentar produzir uma arte bela e
emocionante, sem os quais seus compromissos políticos ou ideológicos em relação
à arte perdem importância. Para ele não é uma questão de se distanciar das tradições,
já que experiências passadas inevitavelmente nos afetam.
[19] (1938-2002) Coreógrafo afro americano funda sua companhia em 1968, momento histórico importante de fortalecimento e radicalização do movimento negro americano, influenciado pelos grandes nomes da dança moderna americana. Foi uma das primeiras companhias de dança norte americanas, sob a direção de um artista negro, a conquistar reconhecimento sem estar atrelado a estilos concebidos como étnicos ou afro-americanos.
[20] Periódico popular fundado em 1942, publicada em Chicago, destinada a cobrir as notícias da comunidade afro americana, sua última edição ocorreu no ano de 1976.
O fato é que a
vitalidade do trabalho artístico está na sua liberdade. Se existem pressões
sobre reivindicações e mudanças sociais há, sobretudo, uma questão sobre
autonomia e honestidade do trabalho artístico. O artista concebe as ações
engajadas como paternalistas ao pretenderem conscientizar o público sobre suas
tradições e ancestralidades. Sua ênfase está na exploração e compartilhamento
das vontades individuais na realização de comentários poéticos sobre as paixões
humanas, condenando qualquer uso e manutenção dos estereótipos.
A maioria das companhias de dança já existentes, dirigidas por coreógrafos negros, tem colocado ênfase nos materiais tradicionais. Eles estão explorando através de sua arte o orgulho da herança afro americana, e podem evocar imagens pungentes que irão incentivar a supressão da intolerância racial. Mas essas imagens não são os únicos meios de comunicar uma consciência negra. Enquanto esta arte tradicional está desempenhando um papel fundamental no despertar de uma identidade cultural negra, agora é igualmente importante para os artistas negros desencorajar a cristalização de novos estereótipos limitantes, por não se circunscreverem a simplificadas imagens tradicionais. (...) A dança que eu faço é afro-americana, simplesmente porque eu sou afro-americano. Minha negritude é parte da minha identidade como ser humano e a exploração de minha dança está evoluindo em relação à minha experiência total como homem. É simplesmente uma questão do que prevalece no ato criativo: a minha experiência total de vida, ou as experiências que eu considero particularmente relevantes para a minha negritude. Americanos tanto brancos como negros têm sido condicionados a aceitarem o mito de que afro-americanos se dão bem apenas em certas áreas previsíveis. Esse mito deve ser dissipado. A recusa de artistas negros em limitar o seu trabalho nas categorias convenientes irá contribuir para a destruição desta noção limitada. Cada dança que criei cresceu a partir da minha experiência pessoal como um americano negro. Cada movimento que eu explorar é parte de minha herança pessoal. (RODGERS, 1998, p. 190, tradução nossa).
Resultado de uma linguagem artística que
se articula politicamente, a dança negra é realizada por uma multiplicidade de atores que, independente
da cor de sua pele, encontram um impulso expressivo nas práticas corporais,
saberes filosóficos e estéticas identificadas ao continente africano, as
imagens construídas sobre ele, sua história e diáspora; mas também daqueles que
a partir de suas experiências e vivências sociais como afrodescendentes expõem
em sua arte as múltiplas mediações poéticas construídas por sua subjetividade.
Desta forma, a participação de Carlos
Laerte no encontro permitiu que considerações fechadas sobre a abrangência da
dança negra fossem reavaliadas, pondo em questão os engendramentos político
identitários deste reconhecimento. Mesmo que o coreógrafo não visualize no seu
trabalho padrões de movimentação das danças afro brasileiras, sua inclusão na
Rede Terreiro, como realizador da dança negra, permitiu contextualizar os polos
diversos dessa linguagem, lançando hipóteses sobre suas estigmatizações.
Um contraponto interessante nesta discussão aparece no trabalho
desenvolvido por Evandro Passos, outro participante do encontro, sua oficina destacou o envolvimento artístico,
sócio-cultural e político desenvolvido pelo coreógrafo. Evandro
nasce em Diamantina e muda-se com a
família para Belo Horizonte na adolescência. Seu primeiro contato com a dança deu-se
pelas congadas ainda na cidade natal. Participa de vários grupos folclóricos,
até que em 1977, inicia sua formação em dança afro com Marlene Silva[21], sua grande mestra.
Em 1982 funda a
Companhia Bataka onde há mais de trinta anos atua como educador e coreógrafo,
defendendo o reconhecimento da dança e do dançarino afro.
Envolvido nos fóruns artísticos de defesa dos editais específicos para a dança afro, condena
círculos de produção cultural resistentes a esta linguagem e defende um fazer
de dança atuante nas comunidades. Evandro não dissocia sua experiência como
bailarino e coreógrafo da vivência junto aos movimentos sociais e de militância
negra interessados nas discussões acerca da cultura afro-brasileira.
No início de sua oficina, Evandro homenageou
Marlene Silva falando da importância da mestra no desenvolvimento da linhagem
da dança afro na cidade. Após breve aquecimento, a aula iniciou com sequencias baseadas nos movimentos da dança afro e teve a participação de
inúmeros bailarinos, inclusive Carlos Laerte e Mestre Dionísio[22]. Na metade da oficina
dividiu os alunos em grupos propondo um exercício de montagem coreográfica a
partir de improvisações sobre os mitos dos orixás.
[21] Conhecida como uma das grandes damas da dança afro brasileira, Marlene Silva, mineira com mais de 50 anos dedicados à dança, inicia seus estudos em balé clássico no Rio de Janeiro. Nos anos 60 o Balé Folclórico Mercedes Batista, apresentando-se em países da América Latina e Europa. Nos anos 70 retorna a Belo Horizonte e inicia trabalho como coreógrafa, desenvolvendo seu próprio estilo de dança afro. Funda a Academia de Dança Afro Primitivo Marlene Silva, primeira escola desta dança na cidade. Ganha inúmeros concursos de dança no Rio, São Paulo e Bahia, período em que obtém grande reconhecimento por divulgar a dança afro na capital mineira. Nos anos 90 leciona em vários estúdios nos Estados Unidos.
[22] Manoel do Santos Dionísio (1936, MG) conhecido como Mestre Dionísio figura emblemática na história do carnaval carioca, inicia na dança em 1955, quando integra o Balé Folclórico de Mercedes Batista. Atuou no teatro na montagem histórica de Orfeu da Conceição, de Haroldo Costa em 1956, passou 14 anos dançando na Europa, e fundou em 1990 a primeira Escola de Mestre Sala, Porta Bandeira e Porta Estandarte do Rio de Janeiro. Atualmente integra a companhia de dança contemporânea Arquitetura do Movimento.
A abordagem engajada
do artista parece associar-se a modelos artísticos
estigmatizados dentro de um campo geral da dança cênica, uma vez que se distanciam dos temas, padrões estéticos e nichos de criação harmonizados
com as demandas da produção e do consumo de uma dança
contemporânea[23],
priorizando o envolvimento nas comunidades e a valorização de aspectos
tradicionais da cultura negra. Esta diferenciação, no entanto, também garante ao
seu trabalho acesso às novas políticas afirmativas do Estado na promoção da
cultura afrodescendente. Sua prática artística, contudo, reconhece a fusão de
inúmeros elementos, como por exemplo, o diálogo com a dança moderna, a formação
eclética de seus intérpretes e a experimentação de procedimentos cênicos
variados, além de pleitear acesso a diversos circuitos artísticos.
Longe de mera pregação ideológica, o
trabalho de dança afro desenvolvido por Evandro auxilia na formação educacional
sensível entre jovens, questiona a discriminação racial e a intolerância
religiosa, além de mobilizar socialmente seus intérpretes na valorização da
cultura e arte negra, seus personagens e atuação profissional.
Jorge Silva, outro artista participante do
evento, mescla uma formação conectada às influências da dança moderna afro
soteropolitana, com a produção artística sensível às novas abordagens
dramatúrgicas da dança contemporânea e as dimensões sociopolíticas de seu
envolvimento como educador nas comunidades de periferia em Salvador. Inicia sua
carreira com forte elogio de crítica e público aos seus trabalhos de dança
contemporânea, sendo premiado durante entre os anos 80 e 90[24].
Conhecido por desenvolver um trabalho de pesquisa de movimento, sempre com
montagens arrojadas, constrói um trabalho dramatúrgico que prima pela pesquisa
de movimento teatralizado sem descuidar do nível técnico de seus intérpretes.
No evento o coreógrafo desenvolveu uma oficina estruturada inicialmente
num aquecimento baseado num trabalho corporal de chão, com estudo de apoios e
alavancas, seguido do ensino de uma sequencia coreográfica mesclando movimentos
afro cubanos e brasileiros, suas diferentes dinâmicas e sutilezas. Após sua
aula prática apresentou um vídeo com imagens de seu trabalho como educador de
dança em Salvador.
Há mais de duas décadas atua nas comunidades onde
desenvolve sua metodologia de ensino. Um de seus projetos,
o Tabuleiro
da Dança, consiste na produção de mostras dos trabalhos de dança realizados por
moradores das comunidades, nas próprias comunidades.
[23] Embora existam iniciativas relevantes que promovam a descentralização e democratização da difusão da produção de dança contemporânea nas metrópoles do país, a maior parte desta produção encontra-se em círculos culturais muito restritos.[24] Jorge Silva desponta no cenário da dança brasileira como revelação na Oficina Nacional de Dança Contemporânea, Festival organizado pela Escola de Dança da UFBA, com o apoio da FUNARTE e Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB), realizado em Salvador entre 1977 e 1997, cujo objetivo era aglutinar profissionais de dança que estivessem realizando pesquisas de novas linguagens.
Este esforço de inserção valoriza
a diversidade como critério e permite, inclusive, a
aceitação de diferentes estilos e sotaques da dança, reconhecendo desejos,
gostos e expectativas de adolescentes das periferias. Existem grupos que dançam
de valsa à música baiana em seu aspecto mais comercial. Seu
projeto mobiliza fazeres independente de formação técnica
ou acadêmica dos dançarinos, numa ação
multiplicadora que descentraliza a formação artística,
promovendo a profissionalização de jovens sem acesso aos espaços
institucionais.
Esse
envolvimento com inúmeros pequenos grupos de dança, formados por adolescentes e
crianças de várias comunidades, possui uma forte ação multiplicadora, na medida
em que ajuda na difusão de experiências e colabora com uma educação plural e
cidadã. Os
monitores do projeto são bailarinos envolvidos com as companhias de dança
contemporânea da cidade, fato que permite vivências entre
artistas profissionais e amadores. Grupos diversificados dividem o mesmo
camarim, numa troca fértil de conhecimentos e papeis, ajudando na formação de
público, no ensino e reciclagem dos artistas, além de permutas sobre formas de
produção e ação cultural nas comunidades.
Jorge
questionou a falta de apoio do Estado da Bahia nas ações de dança, uma vez que
os investimentos acabam voltando-se majoritariamente ao turismo na promoção
restrita ao folclórico e, quando muito, aos parcos editais de dança
contemporânea que atingem apenas os artistas já estabelecidos. Para o
coreógrafo a criação dos jovens artistas da dança é subestimada. Há um
sentimento de desvalorização entre esses realizadores e, apesar da diversidade
desta produção contemporânea, não existe fomento para sua circulação.
Seu
interesse pelo fazer dos grupos amadores, suas formas alternativas de produção,
onde ressalta o papel das academias de dança e dos educadores atuantes nas
comunidades, subsidia sua crítica à dependência dos artistas em relação às
políticas dos editais na dança contemporânea e à falta de autonomia nas
realizações, cada vez mais atreladas às pautas e agendas dos patrocínios
estatais e as referências dos eixos de produção centralizadas no sudeste.
No penúltimo dia aconteceu a oficina da paulista Luciane Ramos, antropóloga,
bailarina e pesquisadora das corporeidades de matrizes africanas. Doutoranda em
Artes da Cena pela UNICAMP, ela destaca-se entre os jovens produtores da dança
negra por seu fazer artístico e reflexivo sobre culturas da diáspora e a dança.
Agregando
à sua formação múltiplas linguagens como a dança afro-brasileira e a dança
contemporânea, nos últimos anos dedica-se ao estudo das danças contemporâneas e
tradicionais no Oeste da África e suas metodologias de ensino, realizando
pesquisa de campo no Senegal, Burkina Faso e Guiné Conacry. Luciane é uma
militante engajada nos movimentos de articulação e reflexão sobre as danças de
matrizes africanas, participa como curadora, organizadora e promotora da
presença dessas linguagens em ações sócio-educacionais e, também, no
fortalecimento político dessas danças em fóruns de discussão artística, nos
espaços institucionais e acadêmicos.
A
oficina foi uma das mais concorridas entre os dançarinos participantes do evento.
Sua abordagem apropria-se das linguagens
conectadas as danças afro, e engendra diversidade nos repertórios de movimento
ao propor releituras das danças africanas em nossa contemporaneidade, revendo,
inclusive, conceitos sobre a corporalidade da diáspora negra, sua
multiplicidade rítmica e relação gravitacional[25].
Sua ação revê as ideias de um "continente mãe" quase perdido no passado, como
se a África não estivesse inserida em contextos globalizados cheios de conflito
e diversidade, mesclando às danças afro-brasileiras os atuais ritmos e danças
da África do Oeste. Atualmente, ministra aulas num dos studios de dança mais privilegiados da capital paulista, defendendo
a necessidade do uso dos espaços profissionais pela dança negra, a criação de
novos olhares conectados com as ações de pesquisa, educação e mobilização
profissional.
A última oficina do evento foi ministrada por Mestre Manoel dos Anjos
Dionísio, realizada na Praça Carlos Drummond de Andrade do lado do Museu
Memorial Vale. Conhecido como Mestre Dionísio, aos 76 anos de
idade, exemplo de jovialidade e experiência, participou ativamente de todas as
oficinas, sempre encorajando os mais novos e nos brindando com valiosos
depoimentos sobre sua trajetória artística, desde os tempos do Balé Folclórico
Mercedes Baptista. Mestre Dionísio é depositário de
uma memória viva sobre a história da dança afro brasileira. Conhecedor das
transformações das danças afro no carnaval carioca foi fundador da primeira
Escola de Mestre Sala, Porta-bandeira e Porta-estandarte no Rio de Janeiro,
responsável pela formação de inúmeros dançarinos atuantes nas escolas de samba.
Atualmente é dançarino convidado do grupo de dança
contemporânea "Arquitetura do Movimento", dirigido pela coreógrafa Andrea Jabor,
mostrando-se ativo e aberto às novas proposições de dança, inclusive àquelas
que sugerem releituras da dança do samba.
Representante de uma linhagem particular das
danças afro sua atuação na Rede Terreiro simbolizou mais do que a conexão desta
tradição com as novas gerações de artistas, mas um exemplo de como as
singularidades deste estilo não estão cristalizadas e são capazes de agenciar múltiplas
intersecções.
[25] Embora exista entre os dançarinos uma imagem sobre uma estrutura corporal comum das danças afro brasileiras pautadas nos pés enraizados, num profundo contato dos pés no chão, demarcando os acentos rítmicos para baixo, muitas danças do oeste africano caracterizam-se pelo acento rítmico conectado aos saltos na movimentação.
Avaliação
No último dia do encontro, realizamos
um seminário de avaliação no auditório do museu, no qual, com a mediação de Rui
Moreira, pudemos discutir em roda os novos caminhos abertos durante os cinco
dias do evento. Esta disposição no espaço, repetida em inúmeros momentos
durante o encontro, não foi aleatória. Além de recuperar sentidos de
coletividade próprios da cultura afro diaspórica, seu nexo de horizontalidade asseverou
a presença participativa e dialógica entre participantes, propositores e
público, permitindo o compartilhar de diferentes olhares de maneira não
hierarquizada.
No final da manhã, fomos levados
pela produção do encontro ao terreiro de candomblé Ilê Wopô Olojukan, local que
sediou, em 2009, a primeira edição do evento e onde seria realizada a cerimônia
de seu encerramento em 2012. A escolha deste local para o encerramento não foi arbitrário.
Mais do que mero símbolo das instituições religiosas afro-brasileiras, o
terreiro sedimenta e incorpora elementos, origens e memórias diversas. Como espaço
social e sagrado, condensa heranças diaspóricas num sentido de reverência e
atualização dessas tradições. O uso deste local ia de encontro com a dinâmica
da Rede, sua potência facilitadora de encontros, sociabilidades e conhecimentos
compartilhados, conectando nexos ancestrais às demandas e as questões de nosso
tempo.
Ao final das atividades pudemos concluir
sobre a importância fundamental destes espaços de troca nos quais processos
artísticos, práticas educacionais e pesquisas acadêmicas apresentaram-se em sua
diversidade, reconhecendo, sobretudo, sua dimensão política no espaço da dança
cênica brasileira. A exposição dessas diferentes abordagens contextualiza e
mapeia as formas de atuação, problematizando as formas de avaliação desses
fazeres na medida em que incentiva a apropriação de novos conhecimentos e
práticas.
Essa dança congrega numa mesma linguagem
desejos de resistência e sobrevivência presentes nas danças de terreiro, nas
corporalidades compartilhadas pelas festas, pela sociabilidade da cultura afro-brasileira
e suas manifestações ancestrais, mas também carrega desejos de inclusão
presentes nos percursos profissionais dos bailarinos fundadores da dança afro
no Brasil, uma dança de palco construída pela fusão de estilos de dança e pela
atuação corajosa e criadora de seus personagens históricos.
No contexto contemporâneo a formação de
cada artista, seus envolvimentos sociais e políticos, sua destreza nos trâmites
da produção cultural, a maneira como dialoga, se reconhece e se nutre das
linhagens coreográficas e dos métodos de transmissão do ensino de dança
historicamente definidos, suas vivências pessoais de um modo geral, além do
modo como ajuíza cada um desses elementos na elaboração do seu fazer artístico
determinam os limites desta linguagem.
A defesa do
reconhecimento do caráter diverso e por vezes conflituoso das danças afro possibilita
a compreensão que seus fazeres e saberes são
transmitidos e simultaneamente inventados, agregando inúmeros códigos e
linguagens. Seu traço comum encontra-se em seu
discurso de etnicidade, seu caráter identitário intrínseco norteado no
reconhecimento de uma matriz étnica, negra e afirmativa.
Tem sido cada vez mais frequente o envolvimento
dos artistas em instâncias de decisão sobre as políticas culturais, questionando
inclusive a centralização de eventos nas atividades do dia 20 de novembro[26],
ação que limita a extensão e continuidade das práticas artísticas ao longo do
ano. O conhecimento sobre os sistemas de patrocínio, o domínio dos termos e
códigos que controlam os sistemas curatoriais são caminhos possíveis para
assegurar que a produção
artística de estética negra, seja em sua vertente tradicional ou contemporânea,
possa reverter situações de exclusão e adentrar espaços a ela
resistentes.
Se muitos profissionais reclamam dos obstáculos enfrentados na promoção desta linguagem em determinados espaços, como
nas Universidades (como campo de produção de conhecimento acadêmico em dança), nas
mídias impressas e visuais, em estúdios e teatros consagrados, a atuação de uma
nova geração de artistas pesquisadores e educadores têm conquistado, aos poucos,
espaços cada vez maiores.
De um modo geral, a interação entre as
demandas e poéticas dos artistas tem garantido o fortalecimento dessas redes e
a maior articulação entre seus participantes. O processo de empoderamento desses
coletivos dialoga com a formação de tensionamentos entre seus atores.
[26] A data comemora o Dia Nacional da Consciência Negra e foi estabelecida pelo projeto lei número 10.639, no dia 9 de janeiro de 2003. Faz referência à morte do herói negro Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares. Marca de resistência histórica do negro e das políticas afirmativas do Estado brasileiro, a data simboliza um momento de conscientização e reflexão sobre a importância da cultura e do povo africano na formação da cultura nacional.
Por estes
embates passam o reconhecimento da diversidade dos sujeitos sociais envolvidos
e o respectivo espaço dado aos diferentes posicionamentos, reconhecendo conflitos,
possibilidades de solidariedade, de reciprocidade e de compartilhamento entre
suas diversas tendências.
A Rede Terreiro ao assumir a dança negra
como panorama diverso de manifestações por meio das quais se estabelecem
variadas formas de apropriação e transformação, contraria concepções essencialistas
e contribui para a supressão de apreciações estereotipadas que a excluem dos
espaços consagrados da cultura oficial. Seu caráter diaspórico aberto
enfraquece os argumentos sobre identidades fechadas e ao mesmo tempo assume a
hibridez de suas escolhas, menos como caráter de sua heterogeneidade e mais
como poder de escolha sobre os códigos e práticas que irão definir suas
fronteiras.
Bibliografia:
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University of Wisconsin, 2002.
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Cultural Palmares, 2007.
* Este artigo foi publicado
inicialmente na Revista Antropolítica - Dossiê Dança nº.33, p.73-97, Niterói,
2º.semestre, 2012.
O evento, cuja segunda edição realizada entre
29 de agosto e 2 de setembro de 2012, foi produzido pela SeráQuê? Cultural, através de projeto
contemplado com o II Prêmio Nacional de Expressões Culturais Afro-Brasileiras,
iniciativa realizada pelo Centro de Apoio
ao Desenvolvimento Osvaldo dos Santos Neves (CADON) em parceria com a Fundação Palmares e patrocinada
pela PETROBRÁS, através da Lei Federal de Incentivo à Cultura.
http://centroculturalvirtual.com.br/conteudo/terreiro-contemporaneo-de-danca-2012-ii-edicao, consultado em novembro de 2012.
Autor / Fonte:fernandoferraz@hotmail.com